Friday, October 07, 2005

Terra Arrasada

- Quando eu digo sim, me rendo. Meus joelhos podem estar machucados dos pedregulhos desse chão, mas minha servidão por isso só é maior. Você sabe que pode fazer o que quiser comigo, eu me regozijo.

- Bom.

Lado a lado, a luz nos emoldura. Duas pessoas olhando a lua nascer e mijar prata no mar. Bar abandonado, longe da cidade. Já disse que é beira do mar? Mar me bota sentimental feito o diabo. Um monte de água enchendo um abismo que vai daqui até todas as terras milhares de quilômetros além, mais fundo do que deve ser a alma, pelo menos a minha. Sou raso como um lago. Só finjo ser profundo e cultivo um poço ou dois pra afogar uns narcisos desavisados vez ou outra. Mas o mar não. É uma profundíssima fera acuada, com suas milumas bocas vindo sempre entregar na praia sua esfíngica mensagem:

- Decifra-me ou te devoro.

Uma terra sem mares é uma alma desnuda. Imagino as expedições desvirginando os abismos, cada pedaço mais recôndito alvo da sagaz curiosidade humana, o homem devorando-se em uma busca infinita de conhecimento. Haveria perigos? Haveria monstros nas cavernas escondidas, nos fossos profundos, que saíriam à noite, se esta houvesse, para devorar os imprudentes que se perdessem pelas trihas do extino engima marinho? O que habitaria o vazio deixado por esse magnífico mar, o que preencheria o espaço das planíceis secas dessa terra arrasada?

Divago. Divago e sinto próximos de mim esses segredos. Seria minha alma rasa já essa terra arrasada e ressequida, um deserto a ser habito por tribos semitas em busca de um deus das tempestades? Seria minha carente de um Moisés? Que recôndito canto da minha personalidade esconde o Monte Sinai a esperar os dez mandamentos que poderiam ditar uma vida? Sinto-me apenas um peregrino, temo o trovão, o sol e a escuridão. Esse exílio incerto que me impus é minha salvação, e as chuvas esparsas me garantem que é melhor a solidão inexpugável do que a certeza aprisionante. Viver a angústia seria o primeiro mandamento?

Faróis passam pela rua, a arma na mão esquerda do homem reluz. Uma mulher está ajoelhada ao seu lado.

- O que quer que eu faça, Danger?

- Morra.