Friday, July 31, 2009

Ronda na madrugada

A madrugada tem um cheiro gostoso, um vento mais vivo, um indefinido desafiador a cada esquina. Não há como negar, é um território familiar e atrativo. Aqui é o meu terreno, onde me descolo ágil por ruas escuras, postes sustentados por sacos de lixo, grilos-vigilantes, mendigos invisíveis, porteiros sonolentos em suas guaritas, praças ainda molhadas de chuva, vacas desgarradas pastando em terrenos baldios, carros em alta velocidade, carros em baixa velocidade, suspeitos, espíritos de crianças que se perderam dos pais, bêbados que se perderam na própria vida, bares cheios, bares vazios, árvores fora de lugar, casais refugiados no aconchego secreto da noite, pedreiros cansados em obras fora de hora, lembranças de uma praia distante, um céu prenhe nuvens, prestes a parir uma tempestade que não pára meus passos, e eu continuo sem rumo, guiando um cabedal de alfabetos esquecidos por uma avenida de linguagens mortas, em que as folhas caídas de uma amendoeira vão cair sobre um feirante que dorme esperando os clientes mais madrugadores, velhinhos que por costume e pela insônia e inquietação da idade saem da cama antes mesmo que eu tenha ido dormir, que acorda, abre um pouco os olhos, retira a folha de cima de seu lençol, olha aquela comunidade num sono que mais parece vigília, e volta a dormir, se conjugam para criar um sentido que se completa no próprio ato, uma obviedade pura e gratuita, cristalina e escura, que diz sim e que diz não, um paroxismo saltitante de alegria, uma gloriosa madrugada sem fim que sempre se torna manhã.

Friday, July 17, 2009

Curuminha

Sente, eu estava precisando conversar com você. Precisar talvez não seja a palavra certa, não sei dizer o que é isso, desejo ou necessidade, curiosidade ou vontade, mas você sabe como eu sou, curuminha, oscilante, vacilante, inseguro e impreciso.

Sente, para conversarmos. É por isso que a chamei, curuminha. Mas, engraçado, não sei que lugar é esse, muito menos o que é que eu tanto tinha para falar. Na verdade, talvez eu não tenha nada a dizer, mas ao mesmo tempo tenho tanto para contar. Uma conversa sem palavras, mas não aquele tipo de diálogo silencioso em que as pessoas se entendem instintivamente, a mão imóvel falando carícias ao rosto angustiado. Não, não é esse sonho romântico a que me refiro, curuminha, mas a uma conversa vazia, sem fala, sem palavras, sem tema, sem o que dizer, uma comunicação falha, que acaba antes de começar, uma implosão de sentidos. O silêncio sussurrando, um lenço branco numa nevasca, branco sobre branco.

Mas as coisas têm nome, curuminha. E se a chamo para nada dizer, para dar voltas incompletas e descentradas, se curvo o pensamento sem chegar a lugar algum, se espiralo em torno de você, bailarino na catástrofe, é porque assim faço o contorno da sua presença no ar, desenho um corpo para me fazer companhia e, pelo menos enquanto escrevo, aplaco a ausência e faço de conta que há solidão há muito já se foi. Só que a escrita termina, a tinta acaba, o dedo cansa, e eu tenho que voltar a dormir, dormir e sonhar com um texto infinito, em que eu esteja sempre recriando você, curuminha. Dormir para sonhar o impossível, e depois apagá-lo.

Monday, July 06, 2009

Vítima do Pensamento

Vasculhando a internet em busca de poemas do Paulo Leminski pro post passado, acabei me batendo com uma citação bem interesse do patrono desse blog. É a seguinte:

"A maldição de pensar fez suas vítimas: em minha geração, vi muitos poetas se transformarem em críticos, teóricos, professores de literatura"

Não aconteceu na hora, mas foi o suficiente para ir fermentando na cabeça e, alguns dias depois, eu dizer para mi mesmo: tá aí, você é uma vitima do pensamento”. Claro que eu não quero dizer que o mundo deixou de ganhar um grande escritor para ficar com um reles revisor de textos, mas lembrei de outros anos, quando escrever era muito fácil, e a minha imaginação rolava solta. Quando ao invés de inventar um post a partir da minha lista de leitura (a próxima readlist comentada está chegando só falta terminar metade de Os detetives selvagens, assim, umas 300 páginas), eu conseguia criar alguma coisa interessante a partir de uma banalidade.

Não quero também dizer que os textos antigos daqui são todos ótimos. Sejamos honestos, tem merda pra caralho aqui. Mas também tem muita coisa que me dá orgulho, que eu consigo reler várias vezes e continuar achando legal. Por exemplo, o post “Eu nunca tive uma máquina de escrever”. Para mim, o melhor de todos. Bem humorado, pega um assunto banal, transforma num tópico relevante, usa boas imagens, enfim, virou modelo da minha boa escrita. Não vou apontar os que eu não gosto, porque aí já é expor a minha própria tortura.

Aí eu me pego pensando, por que cargas d’água eu me deixei virar uma “vítima do pensamento”? Será que foi porque eu resolvi abandonar a criatividade e me dedicar aos estudos de vez, me transformando no clássico modelo de crítico literário, o escritor frustrado? Será que é simplesmente uma questão de hábito, e com o tempo talvez eu consiga reativar esse sótão imaginativo cheio de teias de aranha? Ou será ainda que simplesmente eu tinha uma vida mais cheia de aventuras e descobertas, menos cínica, cética e mal-humorada, mais deslumbrada, esperançosa e surpreendente? Essa hipótese até que casa, mas nesse caso não foi a vida que mudou, e sim eu. Talvez sejam todas as três. Enfim, sabe-se lá o que aconteceu, antes era mais fácil escrever.

P.S.: Esse post daqui tava pronto há um tempo, só esqueci de publicar. Sobre o acidente de carro desse fim de semana, esperem mais um pouco.