Há alguns anos atrás, comprei por curiosidade tipicamente geminiana um livro do António Lobo Antunes, romancista português que sempre colocam acima ou no mesmo nível do Saramago. Só que o livro encalhou por muito tempo na minha lista de leituras, sendo salvo do esquecimento somente no mês passado. Li Os cus de Judas e achei incrível. Um dos melhores livros que já li. Não consegui resistir e no começo desse mês comprei Memória de Elefante, primeiro romance dele, e que forma junto com os Os cus de Judas e Conhecimento do Inferno um tipo de trilogia inicial da obra dele. Terminei de ler hoje o Memória de Elefante e, mesmo achando Os cus melhor (que frase complicada essa…), gostei muito do livro.
Só pra ter uma idéia um pouco melhor, ambos os livros giram em torno de um psiquiatra atormentado pelo fim do seu casamento e pelas memórias da guerra de Angola. Isso tudo faz do cara um alter ego do próprio Lobo Antunes, que era psiquiatra (hoje se dedica exclusivamente à literatura) e serviu o exército português como médico em Angola.
Aí vão alguns trechos que eu gostei. As imagens que ele constrói são bem inusitadas e fortes, as frases se alongam ritmadamente e o enredo praticamente não avança por conta da profusão das digressões que o narrador faz.
Fracasso:
“Seus projectos imaginários de Zorro dissolviam-se sempre, antes de começarem, no Pinóquio melancólico que o habitava, a exibir a hesitação do sorriso pintado sob a linha resignada da sua boca autêntica.”
Solidão:
“Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia da lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiças. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer.”
O fundo do poço:
“- Você encontra-se (observe-me bem) por felicidade sua e infelicidade minha defronte do maior espeleólogo da depressão: oito mil metros de profundidade oceânica da tristeza, negrume de águas gelatinosas sem vida salvo um ou outro repugnante monstro sublunar de antes, e tudo isto sem batiscafo, sem escafandro, sem oxigênio, o que significa, obviamente, que agonizo.”
Amadurecimento:
“Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de plástico, de avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, crescer de facto ou permaneci um puto assustado de cócoras na sala entre gigantescas pessoas crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade horrível, ou tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua desaprovação resignada? Dêem-me tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa que o perseguia de um amor ferozmente desiludido, dêem-me tempo e serei exactamente o que vocês desejam como vocês desejam, sério, composto, conseqüente, adulto, prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre, tenebrosamente desingénuo e definitivamente moro, dêem-me tempo, give me time”
Bem, além disso, algumas frases de efeito tiradas ao léu do livro:
“- Quanto mais se conhecem os homens mais se apreciam os eletrodomésticos, responde ela. Eu vivo maritalmente com um fogão de dois bicos e somos felizes. Só é pena o pulmão de aço da botija de gazcilda.”
“Digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti” (do narrador despedindo-se de um ficha de cassino perdida).
“O que eu faria se estivesse no meu lugar?”
E a frase final do livro e que dá título a esse post:
“Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.”
Sunday, September 16, 2007
Qualquer coisa que me ajude a existir
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