Friday, July 31, 2009

Ronda na madrugada

A madrugada tem um cheiro gostoso, um vento mais vivo, um indefinido desafiador a cada esquina. Não há como negar, é um território familiar e atrativo. Aqui é o meu terreno, onde me descolo ágil por ruas escuras, postes sustentados por sacos de lixo, grilos-vigilantes, mendigos invisíveis, porteiros sonolentos em suas guaritas, praças ainda molhadas de chuva, vacas desgarradas pastando em terrenos baldios, carros em alta velocidade, carros em baixa velocidade, suspeitos, espíritos de crianças que se perderam dos pais, bêbados que se perderam na própria vida, bares cheios, bares vazios, árvores fora de lugar, casais refugiados no aconchego secreto da noite, pedreiros cansados em obras fora de hora, lembranças de uma praia distante, um céu prenhe nuvens, prestes a parir uma tempestade que não pára meus passos, e eu continuo sem rumo, guiando um cabedal de alfabetos esquecidos por uma avenida de linguagens mortas, em que as folhas caídas de uma amendoeira vão cair sobre um feirante que dorme esperando os clientes mais madrugadores, velhinhos que por costume e pela insônia e inquietação da idade saem da cama antes mesmo que eu tenha ido dormir, que acorda, abre um pouco os olhos, retira a folha de cima de seu lençol, olha aquela comunidade num sono que mais parece vigília, e volta a dormir, se conjugam para criar um sentido que se completa no próprio ato, uma obviedade pura e gratuita, cristalina e escura, que diz sim e que diz não, um paroxismo saltitante de alegria, uma gloriosa madrugada sem fim que sempre se torna manhã.

2 comments:

Erika Prata said...

consegui ver as cenas - todas - do início ao fim.

maravilhoso!
estava com saudade das palavras desse tal de Vladimir.

Gabi Coutinho said...

"lembranças de uma praia distante, um céu prenhe nuvens, prestes a parir uma tempestade que não pára meus passos"... Adorei, amigo geminiano! E falando em praia na madrugada, eu tenho ótimas lembranças.. :)
Xeroca!