A porta se abre, o apartamento não está escuro como devia. Do corredor, alguma luz vem. Isso não está certo.
Antes mesmo que comece a pensar que é um ladrão, esquecimento, poltergeist, a ex-mulher fuçando o armário ou alguma nova acrobacia exótica que a cadela do apartemento teria inventado, todas as futuras suposições se desfazem no esboço. É preciso suportar a dureza de ver A Bruxa.
- Que é que você tá fazendo aqui? Como é que entrou? Quem te deu o direito de entrar aqui quando eu tou fora?
Fria. Fria e calculista. Sádica. Ela não responde logo, não fica exaltada como eu já estou. Deixa o silêncio corroer minha paciência, dá alguns passos felinos em minha direção, pára com as mãos na cintura, o rosto levantado, Atena, a Guerreira.
- Calma, queridinho. Vai com calma. Quer saber o quê primeiro?
- Deixa de me enrolar e fala logo. Depois dá o fora.
- Hum...que hostilidade. Uma coisa de cada vez. Primeiro: tava aqui te esperando. Segundo: entrei aqui pela porta. Terceiro: quem me deu o direito de entrar aqui foi a cópia da sua chave que eu tirei quando você estava completamente bêbado naquele outro dia. Explicado? Feliz?
- Me esperando pra quê?
- Pra te dizer que tou indo pra Salvador na próxima semana, vou passar um tempo lá. E preciso que você me dê alguma grana.
- Tá me achando com cara de seu pai?
- Não, eu não deixaria meu pai fazer o que você faz comigo. Mas eu sei que você faria qualquer coisa pra me ver feliz. Ah, e é por uma boa causa. Vou fazer uma tatuagem nova. Você vai gostar quando eu voltar.
É normal se sentir frágil frente à dominação do governo, capitalismo, família ou qualquer outra coisa que um revolucionariozinho de esquina estaria pronto pra te dizer. São grandes, são fortes, são muitos. A alternativa nunca está ali na sua frente. Você não conhece ninguém que se livrou deles, no máximo já ouviu uma história, mas pensou que era lenda. Diferente é ser dominado por uma piranhazinha cínica, inocentemente cruel. Você poderia acabar com ela aqui mesmo. Você poderia mandar aos infernos toda a educação e respeito pelas mulheres que te ensinaram e simplesmente esmurrar a cara dela até que só restasse a trilha de sangue dela se arrastando pra fora do seu apartamento. Mas não.
Você não faz isso. Você pega a sua carteira, tira todo o dinheiro que está ali dentro, o que já não é pouco, e, como bom macaco adestrado, ainda pergunta:
- Você acha que vai precisar de mais?
A sua resposta é a porta batendo, um corpo que se despede de você deixando mais uma cicatriz de humilhação. E você, todo-poderoso Danger, vai procurar carinho na sua cachorra de estimação, dorme com a cabeça encostada a um ventre, embalado pelo acalanto de uma respiração, sonhando com aquela que nunca está.
Thursday, August 18, 2005
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4 comments:
Este tipo de cicatriz é incurável. Este tipo de domínio é indecifrável.Existem pessoas capazes de nos transformar em marionetas. E se tivessemos hipótese, cortaríamos os fios?
Penso que não. Porque por algum motivo talvez gostemos da sensação de alguém nos ter assim:suspensos!
Adorei o texto. Getting better and better!
até pensei em falar alguma coisa, mas depois de ler o comment acima, desisti.... de fato, cortar os fios não passa de uma especulação....
beijo gde menino.
What the hell??!
Pois bem... é provável q eu também acabe como o belo Dorian, depois de tantas cicatrizes. Sibil já tá morta mesmo, acho q não tenho nada a perder...
bejo! :*
Aquela que nunca está... desde a serpente e respectiva dentada na maçã. Não vale a pena. Quanto ao resto, no strings attached ainda é a melhor política
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