Saturday, August 27, 2005

O braço

Lembra quando te apertava contra mim? Lembra quando te abraçava e protegia da chuva? Você, encolhida, encoberta pelo meu corpo? Lembra da minha mão alisando teu rosto, conhecendo teu corpo? Lembra do meu braço?

Cortei. Ontem, pela manhã, desci até um dos lugares abandonados da casa. Entre aquários vazios, povoados apenas com a alma suja dos peixinhos; entre caixas de papelão rasgadas, desgastadas pelo tempo; entre ferramentas enferrujadas, esquecidas de consertar tudo; peguei uma tesoura de jardineiro, cabo alaranjado, descascado pela ferrugem, lâmina enferrujada. Tive que pedir ao vizinho, era difícil fazer sozinho. Fomos até a praça, para não sujar nossas calçadas de sangue, e ele cortou meu braço fora, na altura do cotovelo. Não doeu.

Quem é que vai te abraçar agora? Quem é que vai te proteger? Só posso dar metade do que fui, do que dei. Cortei meu braço pra te deixar precisando do que já não posso dar.

Enrolei o braço num jornal velho para não manchar o piso de sangue. Laveio-o bem, esperei o sangue sair, esperei parar de sangrar. O tempo era grande, se estendia pelos silêncios. Assisti televisão para esquecer de mim.

Vou dormir com o braço ao meu lado. Ainda sangra um pouco, coloquei uma toalha para não sujar minha cama. Os dedos do braço acariciam meu rosto. Será que ele vai me fazer companhia agora? Ele que tanto já fez por você, por outras, por todos os outros? Pelo menos é o esquerdo, ainda posso escrever.

Sonho com espirais de um rosto que não reconheço; palhaços tristes cortando os pulsos; garrafas de vodka cainda de edifícios; um adeus nas cordas de uma guitarra elétrica; carros batendo em postes, em muros, em outros carros. Sonho sonhos violentos, e balbucio para os ouvidos de ninguém frases que só a saudade entenderia. O braço dorme tranquilo, pedaço do que já foi meu corpo, embalsamado na minha memória.

9 comments:

Anonymous said...

Sabes que mesmo depois de um membro ser amputado, o corpo ainda o consegue sentir? "Embalsamado na memória" é sem dúvida a expressão mais adequada. Cortar não significa perder ou esquecer.
O calor daqule abraço permanece em nós."Protect me from what I want!"

Anonymous said...

Bom, talvez um braço cortado não faça muita falta, quando o vale mesmo é a intensão de abraçar.... mas seus cabelos irão me fazer falta.... Akelas mexas já faziam parte de minhas fantasias...

Anonymous said...

Eu tb queria cortar os meus, pra ver se "ele" sentiria falta. Acho que não.

Anonymous said...

Vou pedir que alguém me corte o outro. Tá me faltando coragem pra fazer isso...

Anonymous said...

Bem.. o bom de ser geminiano é que vc pode cortar o braço do seu irmão espelhado quando assim o precisar!
:**

Anonymous said...

Ahh, eu adimiro a sua genialidade!
E como vão os braços, saudosos(interrogação)
Bom, um grande beijo meu bem!!
Fique em paz,
:*****
Nane, ah e o celular, anda dando dores de cabeça(outra interrogação, haha esse meu teclado desconfigurado tah foda)
xausinho:*

Anonymous said...

"Sonho sonhos violentos, e balbucio para os ouvidos de ninguém frases que só a saudade entenderia. O braço dorme tranquilo, pedaço do que já foi meu corpo, embalsamado na minha memória."


vá se fudê, vlad.... anda se usando de telepatia é??? =/

bjo gde moço

Anonymous said...

como sempre, eu volto um ou dois contos, pq vc tem o costume de me pronunciar quando me distraio(rss)

Ah braço...
Com suas letras quis um braço que não fosse meu, que mesmo com todo apego, continuasse sendo do outro e que ele só me doasse quando a vontade o violentasse.
Talvez eu ache braço mais importante que quase todas as demais fatias do corpo.
Braço tem mão, que assume. Tem dobra, que cerca. Tem dedos, que falam. Percebo agora que um pré-requisito de um perfil interessante deve ter um braço bom (que não significa forte,nem comprido, nem fino, nem pesado). Um braço hábil eu diria,um braço sensível e falador.

um braço pra vc mimi

Anonymous said...

poh, gostei muito desse texto. o melhor do blog.