Sunday, July 31, 2005

In Danger

É noite. Tá na hora de entrar em ação.

Sozinho, Danger entra o bar. Está fervendo cigarro, cerveja e conversa. Ele não é um estranho ali, muitos o cumprimentam. As mulheres em especial.

- Hey, sweetie!
- Ta é bonito hoje, hem?
- Oi, cara! Sozinho ainda?

Home está numa mesa fodendo a cabeça de mais um desavisado. Não tô afim de falar com ela. Maldita Home. Eu adoro essa filha-da-puta.

O Bunker é meu tipo de lugar. You wanna go where everybody knows your name. Algo assim, menos americano, menos certinho. Traz uma sensação boa no estômago.

- Garoto, uma vodca com gelo!

Sento no bar e espero Garoto trazer minha bebida. É um velho amigo. E sempre o cumprimento com a mesma frase.

- E aí, cadê o Despair?
- Daqui a pouco deve aparecer por aí.

Tiro um cigarro da carteira, vamos começar. Mas, antes que eu ache o isqueiro, meus olhos têm que se levantar para olhar quem está me dando fogo. É um chute no saco. Um chute no saco, um soco no nariz, costelas quebradas, pulmões sem ar. Porra, é A Bruxa.

- Vai tomar no cú.
- Oi, Danger. Também fico feliz em revê-lo.
- Vai tomar no cú, porra.

Aquele corpo escultural, aquela pele, o perfume. Um sonho encarnado. Na verdade, o mais cruel dos pesadelos encarnado na pele de uma deusa. Nunca irrite uma deusa. Eu já irritei. Foi difícil, mas eu irritei. Hehehe.

- Você sabe que não faço nada sem motivo. Não vai perguntar por que tô aqui falando com você?
- Eu já disse. VAI TOMAR NO CÚ, PORRA!
- Tá, eu vou fingir que você perguntou. Eu quero algo de você.

Filha-da-puta. Eu sei o que ela vai fazer. Eu sei o que ela vai pedir. Eu sei por que ela vai pedir. Ela vai pedir só pra mostrar pra si mesma, pros outros, pra mim, que ela é forte. Vai mostrar quem manda. Vai marcar território. Vai acordar amanhã feliz e saltitante como uma criança indo pro circo. Foda-se. A Bruxa sempre ganha.

- Eu quero você. Na minha cama. Hoje.

Porra, é A Bruxa. É a mulher que eu amo. É o maldito pesadelo que sempre assombra minhas noites. Minha ball and chain. Meu fardo, a cruz que só eu tenho a coragem idiota de carregar. Sempre me prende numa ilusão que ela criou especialmente para mim. Ela vai sempre me foder. Eu vou sempre querer fodê-la. Eu amo A Bruxa.

- Vamo embora, filha-da-puta.

Friday, July 29, 2005

Já Crepúsculo

Isso nunca aconteceu.

O banco era mais um bloco de cimento pintado de branco. Servia. Sentou, o rio corria negro. Não havia porque ser outra cor. Reflexos de prata e ouro, luzes, há riquezas na escuridão.

Esperava? Não se sabe. Sentado, a cabeça voltava-se para cima de vez em quando, olhava o espelho do rio no céu. Onde estaria sua imagem, em que estrela se veria? A penumbra tem o tom do cansaço. Queria respirar um ar mais puro.

Acendeu o cigarro. O amargo da fumaça acaricia a garganta. Ele sempre estava esperando, só esperando. Dar um passo sempre foi cair no abismo.

Camuflada nos meus pensamentos, envolta nos disfarces da noite, não percebi. Sentou-se ao meu lado. Era ela que eu esperava?

Era ela a quem eu queria falar. Virei, afinal, meu olhar. Ouro e prata estavam na pele dela. O rio... Eu sempre estou enxergando o mesmo. Não falei. Não quis atrapalhar um milagre: ela tomou a iniciativa.

- Desculpe.
- Eu te desculpo. Não desculpo a vida.

Desencontros. Você corre, deslumbrado, deslumbrante, rompendo-se de alegria para abraçar a tão esperada, o tão esperado (re)encontro. Mas nunca é a pessoa certa que você abraça. É um estranho que te olha com a cara fechada. Só sobram os pedaços de você que caíram no caminho.

- Odeio desencontros.

Danger abriu a mão, uma borboleta amarela voou em direção a outra margem.

- ser o que seria:
já crepúsculo mal
começa o dia?

Mas isso nunca aconteceu.

Thursday, July 28, 2005

Café Milagre

Quando pequeno (e quando adolescente também, por que não?), eu não tomava café. Achava quente demais, escuro demais, amargo demais. E como eu era extremamente chato com comidas e bebidas quando pequeno, era mais um liquído pra lista dos que eu olhava e dizia:

- Eca!

Enfim, eu não gostava de café. Até, que certa vez, mais crescidinho (nossa, até parece que eu sou um cara vivido...) viajei para um encontro de estudantes de Letras em São Carlos, interior de São Paulo. Para quem estava acostumado com o calor do Nordeste brasileito, nosso friozinho ameno dos meses chuvosos, aquela foi uma experiência pra lá de fria. Tive que comprar luvas, ficava com um moleton por baixo do jeans, casaco, blusa, duas meias, tudo que pudesse usar pra me aquecer. Foi aí que, pela primeira vez, fui apresentado aos poderes revitalizantes do café!

Ah, o café....

Naquele tempo frio como a desgraça (cheguei ao meu recorde de 9 graus celsius), o café e o chocolate quente eram meus melhores amigos. Mas o café tinha aquele gostinho de amor novo, recém descoberto, sem mágoa, sem desgaste, uma delícia.

Quando voltei para Aracaju e contei para minha mãe sobre minha nova paixão, ela ficou mais entusiasmada do que eu. Sempre que podia, no começo da noite, me chamava para com ela saborear um café, um pão quentinho com manteiga e uma conversa bem leve. Mas eu descuidei, esqueci as lições que a raposa ensina, não fui responsável com aquilo que cativei, e meu affair com o café logo foi relegado ao esquecimento.

Até que ontem, em meio a uma reunião informal de trabalho, no ateliê de Milton, o professor de artes, me foi oferecida, no mesmo horário que minha mãe costumava me chamar, aquela velha paixão há muito guardada no Armário das Coisas Esquecidas. Meu receio me segurou um pouco, coloquei apenas meia xícara, estava com medo dessa experiência de reencontro. Mas foi maravilhoso, e apenas a presença daquelas pessoas que tão pouco compartilham da minha intimidade me impediu de repetir a dose tomada.

Ah, mas o destino tem suas brincadeiras. Quando acordo hoje, cedo, para, ainda em férias, começar a corrigir algumas redações que tinha que entregar às 9:00, quem encontro ao, inocente como eu só, descer as escadas em busca de um pouco de água? A minha querida, minha reencontrada, minha "Eros & Psiquê", meu amor. Ela me seguiu até em casa, e parece que agora não vai mais me deixar. Tomei uma xícara bem tomada, mas só uma, para não queimar rápido esse amor. Estou feliz, elétrico, contente, pleno, disposto, tudo que não despertava em mim há algum tempo. O sol brilha lindo como ele só porque tomei café.

Sim, eu estou apaixonado pelo café!

Sunday, July 24, 2005

Not the right one

- I'm not the right one.

Sentados frente a frente, Later e Home.

Vodca, gelo e limão num copo. Cigarro incessante na outra. Será que ele nunca se acaba? Cabelos vermelhos cacheados, descendo até a altura dos seios, inclinada para frente, braço esquerdo dobrado sobre as pernas, saia negra, jaqueta jeans aberta, top preto por baixo. Da última vez que tinha visto, por foto, ele jurava que a esfinge tinha um rosto diferente. Baixava os olhos, não era ele o Édipo que iria resolver esse enigma. Não tinha descoberto nem o que era ficar de pé.

Camisa branca abotoada, até em cima, enfiada por dentro de um jeans, cinto de couro preto com fivela prateada, discreta, relógio de pulso, braços cruzados, cabelos negros lisos, pouco crescidos, quase espetados, olheiras. Fixava a água que sua coca-cola recolhida pelo garçom tinha deixado na mesa.

- Eu pensei...eu não sei...achei que nunca mais iria ver você de novo. Aquele dia foi tão rápido, mas tão inten...Eu não sei bem o que aconteceu, eu pensei em você todo esse tempo, aquilo não me saiu da cabeça. E você não me deixou nem seu telefone. Não respondeu nada. Eu...eu...como você me encontrou? Eu...às vezes fico achando que você nem é real...
- I have my secrets.
- Por que você sempre fala em inglês? Você...essa é só a terceira vez que ouço sua voz...Você não é daqui? É americana, inglesa?
- Wrong question.

Esse o movimento que sempre me escapava. A reprodução infinita dos cigarros. Nunca deixa de haver um nas mãos dela. Nunca deixa de haver um isqueiro para acendê-los. Esse o movimento que me escapa.

- Eu não entendo você...Seu nome, seu nome é mesmo Home? É um nome estranho...eu sei que o meu também é. Eu só estou tentando enteder.
- ...
- Como você me achou?
- You have always been where you were. It was easy.
- Por que você continua a fazer isso comigo? Da outra vez, você simplesmente não falava nada. Agora, fala, mas não diz nada. O que é isso, o que é você? O que você espera que eu faça, Home?

Um trago no cigarro e, surpresa, apaga-o antes de terminar, um cigarro que mal tinha fumado, em que mal tinha tocado a boca, a boca de Home, convidativa como um sinal vermelho pede para ser ultrapassado.

- Devora-me ou te decifro.

Tuesday, July 19, 2005

Meu blog, meu cosmo

Estou muito empolgado com os personagens que estão surgindo dos textos desse blog. São meus próprios deuses, meus próprios mitos, meus instrumentos. Mas, ao mesmo tempo, eles começam a ganhar vida própria e, pedaços de minha personalidade que são, começam a ganhar vida sem que eu nem mesmo perceba. Fogem de mim e eu não estou nem um pouco preocupado em segurá-los.

Danger, de "Cheiro de vinagre", é o mais novo integrante e já ganhou minha preferência. Tenho certeza que ainda vou escrever muito sobre ele. Fumante, motorizado, letrado, com um ar de cafajeste infantil, tem um tom urbano que gostei bastante.

O par Home e Later já apareceu em duas histórias, "Read This" e "O céu visto à noite". Sobre eles paira sempre um ar de mistério e surrealismo. As histórias estão bem distanciadas temporalmente e ainda há muitoo que escrever sobre eles. O próximo texto será mais um sobre os dois. Later é instigante, a superação da normalidade perpetrada por ele e sua transformação num corpo-universo me fascinam (e, como ficcionista, intrigam, já que vou ter que falar sobre isso). Home é a mulher-esfinge por excelência. Imagino-a como uma femme fattale menos exuberante e mais realista.

Por último, resta ainda Mr. Despair, que apareceu num dos meus primeiros contos "Onde Andará Mr. Despair". Esse ainda é um grande enigma pra mim, mas já estou começando a pensar em outra história com ele. Já percebi que vou ter que criar um personagem pra encarnar o narrador do conto em que ele aparece a primeira vez. Isso também está sendo formulado.

Existem vários ganchos de personagem a serem explorados. Os contos "Dormir no sofá" e "Goodbye kiss" são dois que podem gerar algo. Ou não!

É muito bom ter um cosmo para brincar de Deus!

Sunday, July 17, 2005

Cheiro de vinagre

Dirigia. E recordava.

Ali do seu lado, olhos fixos à frente, já havia um minuto que ela não falava nada. Um minuto...O que devia ele fazer? Qual recurso utilizar para converter aquele momento de inexatidão em algo palpável? Piada infame, comentário banal, charme de segunda mão? O que fazer agora que, empedrada depois de uma dieta de coices e cuspes, sua barriga novamente sentia frio?

Ah, Danger, você se enxerga demais. Cada momento uma sala dos espelhos. E o que acaba sempre restando pra você são ilusões que sua prórpria mente cria.

- Esse carro tem um cheiro estranho!

É a fumaça negra que sai da minha cabeça. É a imensidão de vermes que comem meu corpo. É a praga da Bruxa fazendo efeito. É o destino anunciado pelo oráculo se aproximando. É o tempo correndo célere e comendo meus pés.

- É vinagre.

Paro o carro. Acendo um cigarro e olho pro assento vazio. Imagino os contornos dela como o esboço de um desenho. Aquilo melando o céu de azul e amarelo é a madruguda. Posso ter certeza disso. Penso em Leminski:

Amar é um elo
entre o azul
e o amarelo

Minhas certezas se confundem como cores misturadas numa paleta. Meu braço se apoia na janelo do carro acenando para os corajosos que madrugam comigo nas pistas. Acabo o cigarro na metade e dou partida no carro. Está na hora de esquecer.

Friday, July 15, 2005

Get Stoned

Everybody must get stoned
(Bob Dylan)

Well, they'll stone ya when you're trying to be so good,
They'll stone ya just a-like they said they would.
They'll stone ya when you're tryin' to go home.
Then they'll stone ya when you're there all alone.
But I would not feel so all alone,
Everybody must get stoned.

Well, they'll stone ya when you're walkin' 'long the street.
They'll stone ya when you're tryin' to keep your seat.
They'll stone ya when you're walkin' on the floor.
They'll stone ya when you're walkin' to the door.
But I would not feel so all alone,
Everybody must get stoned.

They'll stone ya when you're at the breakfast table.
They'll stone ya when you are young and able.
They'll stone ya when you're tryin' to make a buck.
They'll stone ya and then they'll say, "good luck."
Tell ya what, I would not feel so all alone,
Everybody must get stoned.

Well, they'll stone you and say that it's the end.
Then they'll stone you and then they'll come back again.
They'll stone you when you're riding in your car.
They'll stone you when you're playing your guitar.
Yes, but I would not feel so all alone,
Everybody must get stoned.

Well, they'll stone you when you walk all alone.
They'll stone you when you are walking home.
They'll stone you and then say you are brave.
They'll stone you when you are set down in your grave.
But I would not feel so all alone,
Everybody must get stoned.


Uma boa música para essa fase da minha vida.

Thursday, July 14, 2005

O céu visto à noite

O caminho inicia-se adornado de pequenas pedrinhas (pontiagudas algumas) que incomodam os pés descalços daquele que aí anda pela primeira vez. Há arbustos ao redor, mas o início do quebra-mar é pedra por dentro e areia por fora, inverso do seu prosseguimento.

Um homem, vestindo um longo sobretudo marrom, começa o caminho, pisando receoso nas pedras, como um ladrão num assoalho. O vento forte e frio da praia amacia seus finos cabelos negros. Suas mãos estão nos bolsos do sobretudo fechado.

O caminho continua e sua configuração muda. As pedras do quebra-mar projetam-se do lado direito, deixando embaixo a areia molhada de lagoinhas formadas pelo mar. A areia vem comendo as pedras pelo outro, ficando no mesmo nível da passagem, marcando os pés de nosso homem com finos grãos. Vento e areia, juntos, cortam fina e delicadamente a pele dele.

É um primeiro encontro e ele se dirige ao fim do quebra-mar, onde está não um farol, como haveria nas boas histórias, mas apenas um bloco de concreto com um sinalizador vermelho. É dia, o sinalizador de nada adiante para ele. Apenas para barcos desavisados que se aproximam perigosamente dos rochedos finais do quebra-mar.

O caminho, antes do final, novamente ergue as rochas do seu lado direito, dessa vez sobre o começo de ondas do mar, algumas mesmo jorram água na passagem. Do lado esquerdo, agora existem plantas rastejadoras na areia, que evitam o vento rente ao chão, e grandes rochas, como as do lado direito, enterradas na areia, apenas a parte superior para fora. Em alguns pontos, algumas se amontoam. Formam refúgios para inconcebíveis prazeres, pensa nosso homem.

Ele recebeu seu recado. Após uma curva no caminho, entrada para a parte final de sua pequena jornada, ele avista o sinalizador, o bloco de concreto e, sentada sobre ele, uma mancha vermelha cujos cabelos castanhos o vento quer levar consigo. É Ela.

O final do caminho consiste em rochedos se projetando em ambos os lados sobre o mar. O que era areia fina no meio do caminho novamente se converte em pedra. Dessa vez, em maior quantidade e mais afiadas. Não é mais um ladrão no assoalho que está andando, mas um suicida num campo minado. As pedras estão molhadas, em falso, pode-se escorregar e cair. É preciso saber onde se pisa, e nosso homem não pode voltar os olhos para cima sem perigo de ir ao chão.

Ele finalmente termina seu caminho, perto do bloco de concreto as pedras dão uma trégua, mas o vento dificulta que ele ouça Sua voz. Ainda sim, chega a ele isso:

- Olá, Later. Então você recebeu meu recado.

Sem responder, Later tira as mãos dos bolsos, leva-as à altura do pescoço e começa a desabotoar passo-a-passo o sobretudo. Logo que termina sua ação, com um movimento de ombros e ajuda renovada de suas industriosas mãos, ele retira o sobretudo.

Não é pele o que aparece por baixo. É uma matéria negra, como o espaço, como o céu olhado à noite. E nessa matéria há vários pontos luminosos, estrelas a gotejar a superfície, são tantas como o céu visto à noite. Seus olhos são dois grandes pulsares, ai! se pudessem ser vistos no céu visto à noite. Na altura do coração, um grande buraco negro a consumir tudo, pedra, areia, mar, sinalizador, concreto, estrela, quebra-mar, o céu visto à noite. E de sua boca, único sol dessa constelação, saem alguns raios de luz:

- Mergulhe no infinito do meu corpo.

Saturday, July 09, 2005

Dormir no sofá

Lembro-me do dia em que você me pediu que dormisse no sofá. Você, com aquela sua calma e suave voz, fez esse pedido incomum - para a cultura masculina, geralmente dormir no sofá vem como ordem - numa fria noite em que eu, propositadamente, havia vestido uma calça moleton - apenas.

Lembro-me, lembro-me bem que já há algumas semanas sua mão não tocava meu corpo, seu braço não me enlaçava e sua boca não me beijava (in)decentemente. Ah, mas daquela noite não passaria. Quando fomos para baixo das cobertas, proteger-nos do frio chuvoso do inverno nordestino, encontrei não o aconchego do teu ventre quente, mas a mesma resistência fria que a parede do quarto impunha ao vento. E quando sua esquivança médica - dor de cabeça, costas doloridas, cansaço - percebeu que não seria suficiente, você pôs uma ilusão nos meus olhos, abraçou-me carinhosamente, e, com uma voz felina, fez aquele pedido:

- Amor, eu tô muito cansada e você tá todo irrequieto. Acho melhor você dormir no sofá, não?

Não, não era. Mas resignei-me e, como um marido obediente, fui cumprir o dever de me afastar.

Ah, sofá. Eu não imaginava ainda que você, peça tão usual e relegada a um papel secundário na arquitetura da casa, pudesse ter contornos tão aconchegantes. Meu corpo naquela noite deitou-se no seu como se ali fosse minha casa, meu útero, minha tumba. Suas mãos impossíveis massagearam minhas costas, mexeram nos meus cabelos e Abraçaram-me. Querido sofá, você me acolheu e me recebeu como legítima esposa, finalmente voou a águia presa.

E agora, querida, você vem pedindo meu corpo que já não é seu, meu carinho que gasto em outra amante, meu amor e sexo que você antes rejeitou. Ah, mas agora querida, sua voz felina não vai rasgar mais a pele dos meus desejos. Agora, querida, não é mais com você que eu durmo. Eu durmo com o sofá. Eu quero dormir no sofá.

Nóia

De "Fragmentos de um discurso amoroso", Roland Barthes, que está me servindo de auto-ajuda (eca!) pra melhor compreensão de meus fenômenos internos (nossa, que complicado isso...).


CIÚME. "Sentimento que nasce no amor e que é produzido pelo temor de que a pessoa amada prefira um outro." (Littré)

"4. Como ciumento, sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme fira o outro, porque me deixo sujeitar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum."

E quem disse que Gêmeos é um signo que desconhece o ciúme?

A fada dos dentes, onde está?

And from the darkness, someone rises:

E se eu tomasse em meus braços esse mundo e o moldasse à minha vontade, ele não seria nem menos injusto nem mais justo, pois minhas mãos são inúteis para refazer aquilo que já está dado, e nada pode ser refeito sem que eu seja refeito, sem que o ato de refazer seja refeito, sem que você seja refeito, sem que o mundo a ser refeito seja refeito. E eu sou continuamente o mesmo.

Será essa a prisão a que estou condenando? Estarei no corredor na morte ou serão essas grades mais uma alucinação? Será essa minha traição ou será que me estão traindo? Onde está o ponto seguro que há pouco me disse:
- Lá está o Norte.

E sempre irei abstinadamente, como um frei herege que não quer se desgarrar de sua fé, acreditar na ilusão (barreira da minha sempre almejada meta) de que um dia, quem sabe um dia, irá levantar-se sem medo um sol que irá expulsar-me todo remorso, temor e amargura. Irá erguer-se um gigante para esmagar todo meu ciúme (do que não tenho), toda minha inveja (que me corrói como ferro velho) e toda minha insensatez (que me leva palavras às mãos que nunca imaginei nas minhas digitais). Acredito no novo como um menino espera que venha a fada dos dentes para passar sua dor.

And to the darkness I walk, without fear, but I regret so many things.

Wednesday, July 06, 2005

Read this

- Read this, Later.

Aquela estranha figura que o tinha olhado fixo quando ele acobertou-se no bar, que o tinha chamado a uma mesa, que tinha resistido petreamente, cigarro após cigarro, a suas perguntas sobre os porquês, comos e o quês de tudo aquilo, que o tinha arrancado de sua via comum com um olhar esfíngico, tirando poeira de séculos sobre o verbo seduzir, que tinha em relâmpagos pago a conta e se levantado, num flash, sussurou a frase em seu ouvido e sepultou-lhe na mão um pedaço de papel dobrado.

O que restava sentado sozinho àquela mesa de bar? O mesmo homem que cinco minutos atrás procurara um teto para fugir da chuva? O mesmo homem recém-saído do trabalho a caminho da solidão de um apartamento? O mesmo homem de vida regrada e monótona, sem glória alguma para orgulhar-se, sem graça alguma para regozijar-se? O mesmo homem que tanto deixara pra trás em nome de algo que até o nome lhe escapava agora? O que havia àquela mesa, sentado naquela cadeira, era um resto, nem corpo, havia ali só o oco silêncio.

Mas, como o nascimento da primeira estrela, surgia naquele cemitério de sons um eco, o Primeiro Eco. Começou na testa, entre as sobrancelhas, que se ergueram, altura do terceiro olho, desceu pescoço, dobrou no ombro esquerdo, cambalhotou pelo braço, bateu na mão e abriu um dedo. Começou a desdobrar o papel. Numa foto preto-e-branco daquele enigma havia escrito em letras vermelhas:

- Just call me Home.

Monday, July 04, 2005

Esse jardim

"Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros, que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado ao pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado."

(Mário Faustino)


Onde ficará o jardim das reconciliações impossíveis, dos perdões impedidos? Será um jardim onde toda culpa aflora ou resseca? Vingança dos vencidos ou comunhão dos vencedores?

Sunday, July 03, 2005

Goodbye kiss

Há um túnel escuro à minha frente, e, nesse túnel, quatro portas. À esquerda, logo no início, uma, aberta, ignoro-a. À direita, duas mais: a primeira, aberta também, de onde sai uma luz azul, como a de uma televisão ligada; a segunda está fechada; ignoro-as. Ao fim, uma outra, entreaberta. Não é possível divisar o que ela faz presente, mas eu pressinto. SEI que ali está.
Dou o primeiro passo, o que se chama Receio. Dou o segundo passo, o que se chama Insegurança. Dou o terceiro passo, o que se chama Medo. Dou o quarto passo, o que se chama Ansiedade. Dou o quinto passo, o que se chama Desespero. E chego.
Empurro a porta e a escuridão é rachada pelas luzes que a cidade joga noite afora. Está lá, sim, Ela está lá. Os rasgos da escuridão aparecem contornos. Dorme. De costas para mim, de lado, pernas juntas e levemente dobradas, mãos juntas. Quase a posição de uma penitente, mas essa metáfora a realidade se encarrega de desfazer.
É preciso dar mais um passo e eu sei que ele é o da Solidão. Aproximo-me, curvo-me. Ah, o calor desse corpo...Beijo-lhe, levemente, a face que está exposta. Ergo-me e faço o caminho para fora do túnel.


Comentário: Menos simbólico e mais impreciso do que parece.

Friday, July 01, 2005

Poema de Amor

Ao conversar com uma amiga com que há muito tempo não conversava, entendida ela também nas artes da palavra (a maga Cibele), lembrei-me de um poeta americano que também há alguns poucos anos atrás era fixação minha: e.e.cummings (o nome dele se escreve assim em minúscula, mesmo, preferências dele). E lembrei-me do poema que mo apresentou (rará! Usei uma construção correta e arcaica do português! Juntei os pronomes me e o e formei mo!). Esse é um dos poemas de amor mais belos que já li, tanto a tradução de Augusto de Campos como o original em inglês. Zeca Baleiro o gravou e deu o nome de "Nalgum lugar", palavras iniciais da tradução. Eu já o recitei ou enviei para duas pessoas, mas, para não desgastar nem parecer repetitivo, eu deixei de usá-lo. Afinal, iria parecer que eu só o uso como uma cantada barata. E não é essa minha relação com a poesia. Enfim, aqui vai o poema. Respeitando meus amigos que não sabem inglês, coloco a bela tradução de Augusto de Campos.


nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

Lindo, não?