Saturday, July 09, 2005

Dormir no sofá

Lembro-me do dia em que você me pediu que dormisse no sofá. Você, com aquela sua calma e suave voz, fez esse pedido incomum - para a cultura masculina, geralmente dormir no sofá vem como ordem - numa fria noite em que eu, propositadamente, havia vestido uma calça moleton - apenas.

Lembro-me, lembro-me bem que já há algumas semanas sua mão não tocava meu corpo, seu braço não me enlaçava e sua boca não me beijava (in)decentemente. Ah, mas daquela noite não passaria. Quando fomos para baixo das cobertas, proteger-nos do frio chuvoso do inverno nordestino, encontrei não o aconchego do teu ventre quente, mas a mesma resistência fria que a parede do quarto impunha ao vento. E quando sua esquivança médica - dor de cabeça, costas doloridas, cansaço - percebeu que não seria suficiente, você pôs uma ilusão nos meus olhos, abraçou-me carinhosamente, e, com uma voz felina, fez aquele pedido:

- Amor, eu tô muito cansada e você tá todo irrequieto. Acho melhor você dormir no sofá, não?

Não, não era. Mas resignei-me e, como um marido obediente, fui cumprir o dever de me afastar.

Ah, sofá. Eu não imaginava ainda que você, peça tão usual e relegada a um papel secundário na arquitetura da casa, pudesse ter contornos tão aconchegantes. Meu corpo naquela noite deitou-se no seu como se ali fosse minha casa, meu útero, minha tumba. Suas mãos impossíveis massagearam minhas costas, mexeram nos meus cabelos e Abraçaram-me. Querido sofá, você me acolheu e me recebeu como legítima esposa, finalmente voou a águia presa.

E agora, querida, você vem pedindo meu corpo que já não é seu, meu carinho que gasto em outra amante, meu amor e sexo que você antes rejeitou. Ah, mas agora querida, sua voz felina não vai rasgar mais a pele dos meus desejos. Agora, querida, não é mais com você que eu durmo. Eu durmo com o sofá. Eu quero dormir no sofá.

6 comments:

padecoisa said...

muito bom esse texto, sinto uma coisa meio brunomontalvaniana no teor, inclusive.

=P

Anonymous said...

Existe sempre uma razão para o sofá entrar na vida de duas pessoas que se amam. Começa por ser um local de primeiros encontros, de aconchego. Mas aos poucos começa a desempenhar esse papel de confidente e de companheiro a que você se refere...
Aquele sofá que acolhe nossas lágrimas sofridas , que aquece nosso corpo que treme de frio por dentro, que partilha seus braços e suas almofadas...aquele sofá espera que sejamos felizes. Espera por mais um corpo ali com ele.Para além de nós.

Anonymous said...

Nunca tinha pensado no sofá como um objeto de poesia... Adorei o texto. Beijos...

Anonymous said...

Como tinha te falado, esse foi um dos melhores textos que jah li aqui!
Naum sei se pelo fato de vc usar "o sofá", um objeto taum comum que parece naum ter vida e ser sem sal, se tornar utdo isso que "sem rumo" falou. Naum sei se pelo fato de ser um texto sexual e sensual (adorei a parte do moleton...), ou ainda pelo jeito de dar um fora na pessoa que te desprezou num momento que vc precisava muito (que maldade...dizer não pra vc...rs)!
Xeru Vlad
ps: por favor...escreve mais desses, eu amei mesmo!
;*

Anonymous said...

Meu irmão, Vlademir é bizarro... Depois da fase sexo com animais agora veio sexo com objetos!!! Num podia ser alguma coisa mais sensual nao? uma lata de leite condensado, uma garrafa de coca, essas coisas.. mas foi escolher logo um sofá... q sem graça =p

Anonymous said...

Muito original, como vc! Realmente, é muito inusitado trocar o sexo carnal, de uma mulher pelo espiritual (e de um sofá). Juro que trocaria de lugar imediatamente com ele....